No Half Smiles: Porque é que a medicina dentária deve regressar aos cuidados de saúde

Quando criei a frase "No Half Smiles" há quase 20 anos, não se tratava de facetas ou branqueamento - tratava-se de ética.

Tratava-se de recusar fazer medicina dentária que só tem bom aspecto à superfície, ignorando a doença subjacente. Tratava-se de rejeitar a ideia de que os dentistas deveriam simplesmente fazer o que os pacientes pedem, em vez de fazer o que eles precisam clinicamente. E tratava-se de devolver a dignidade a uma profissão que, em muitas partes do mundo, foi reduzida a uma mecânica dentária transacional.

Se é dentista e está a ler isto, pergunto-lhe:

Quando é que deixámos de ser médicos?

Imagine isto na medicina

Um paciente entra no consultório de um cardiologista. Precisa de um bypass triplo. Em vez disso, diz:

“Doutor, estou com um orçamento limitado – pode tratar apenas da artéria que está realmente bloqueada? Eu trato das outras mais tarde.”

O cardiologista recusar-se-ia. Não seria ético. Seria perigoso. Ilógico.

Ou imagine uma mulher que vai ao oncologista. Foi-lhe diagnosticado um cancro da mama em ambos os lobos. Diz:

“Tenho um casamento para a semana. Podemos tratar apenas o esquerdo? O direito ainda não dói.”

Nenhum médico concordaria. O cancro não se importa com a agenda dela.

Mas em medicina dentária? Isto acontece todos os dias.

Os pacientes chegam com abcessos, canais radiculares que não funcionam, infecções sistémicas e uma mordida em colapso – e dizem, “Pode só arranjar o dente da frente? Não gosto do aspecto que tem”.

E o dentista, com medo de perder o paciente (e o rendimento), diz que sim.

Isto não são cuidados de saúde.

Isto não é ético.

Isto não é medicina dentária.

O dentista como curador – não como técnico

Uma boca saudável é a base da saúde sistémica.

E, no entanto, na maioria dos hospitais actuais, um exame completo do corpo não inclui sequer um exame dentário.

Fazem um exame ao coração, aos pulmões, analisam o sangue e testam as hormonas. Mas ninguém verifica o microbioma oral, o maxilar, os canais radiculares ou a oclusão. E, no entanto, há mais de 30 anos que a investigação tem mostrado ligações claras entre a doença periodontal e o risco cardiovascular, a neuroinflamação, a carga autoimune e até problemas de sono e de fertilidade.

A medicina dentária foi exilada dos cuidados de saúde gerais – e os dentistas deixaram que isso acontecesse.

No Half Smiles: uma filosofia de tratamento

A filosofia No Half Smiles baseia-se numa ideia simples, mas poderosa:

Nunca faça o que o paciente quer até ter explicado completamente o que precisa.

Não faz mal se o paciente não puder pagar tudo de imediato. Mas o que não está certo é ignorar a patologia só para fazer um dente “parecer bem”. Se o seu tratamento não começa com o diagnóstico – se não dá prioridade à biologia e à função a longo prazo – então não está a prestar cuidados de saúde. Está a decorar a disfunção.

Na minha clínica, a White Clinic em Lisboa, Portugal, dividimos cada plano de tratamento em três domínios:

1. Biológico – infecções, quistos, doenças das gengivas, lesões ósseas, materiais tóxicos

2. Mecânica/Funcional – oclusão, falta de dentes, problemas ortodônticos

3. Estética – alinhamento, cor, forma, desenho do sorriso

Tratamos sempre por essa ordem. Porque a beleza sem a biologia é uma mentira. Há décadas que é assim.

Já recusei tratar pacientes que se recusavam a tratar infecções mas insistiam em facetas estéticas. E sim, alguns foram para outro lado. Mas muitos voltaram – porque, no fundo, sabiam que não estávamos a vender um serviço. Estávamos a oferecer uma cura.

A medicina dentária não é um mercado

Qual é o problema? Muitas clínicas funcionam actualmente como mercados.

Os pacientes entram, apontam para o que querem e esperam sair com o que querem – como se estivessem a encomendar de um menu.

Mas não está a comprar uma mala de mão. Está a confiar a sua saúde sistémica a alguém treinado para compreender o que está por baixo da superfície – infecções que ainda não doem, lesões ósseas invisíveis ao olho nu, canais radiculares que parecem bem num raio-X, mas que abrigam bactérias patogénicas.

A medicina dentária não é um produto de consumo.

É por isso que na White Clinic, todos os pacientes são submetidos a um exame completo de CBCT 3D, a um teste de saliva a-MMP8 (uma enzima presente na saliva quando há muita degradação do colagénio devido a uma saúde comprometida), bem como a um teste de Vit D. Relembro que a vitamina D é fundamental para a remodelação óssea e que os dentes estão incrustados no osso e queremos que este esteja o mais saudável possível. Não vendemos, educamos.

E dizemos não quando necessário.

O nosso negócio não é tratar um dente de cada vez. O nosso negócio é a reabilitação oral completa.

Porque é aí que vive a saúde.

O custo de dizer sim

Há uns anos, tratei uma figura pública poderosa que veio cá para uma pequena obturação. Reparei que havia um quisto escondido no dente adjacente e avisei-o. Ele encolheu os ombros – “Não dói nada. Faz só o que eu pedi.”

Meses depois, num jantar de alto nível, mordeu algo e gritou de dor. Em frente a 80 pessoas, disse a brincar, “Stanley, és um péssimo dentista!” – assumindo que era o dente que eu tinha tratado. Não era. Era aquele de que o avisei.

Perdi credibilidade naquela sala. Perdi confiança. Provavelmente perdi futuros pacientes.

E apercebi-me: nunca farei apenas o que me pedem, ou “meia medicina dentária” outra vez.

A medicina dentária merece mais

Precisamos de trazer a medicina dentária de volta à conversa sobre cuidados de saúde.

Começa por nós.

Significa:

  • Fazer um diagnóstico completo e não adivinhar
  • Apresentar planos de tratamento completos – mesmo que o paciente diga não
  • Dar prioridade à biologia, depois à função e depois à estética
  • Dizer não quando os pacientes pedem atalhos
  • Assinar um consentimento informado quando são feitas cedências

Não se trata de elitismo. Trata-se de ética e de prática baseada em evidências.

Se um paciente tem 10 infecções mas só quer facetas, não é o dentista desse paciente – é o seu facilitador.

Os dentistas têm de voltar a pensar como médicos.

Porque se não valorizarmos o que fazemos como profissionais de saúde, ninguém mais o fará.

Considerações finais

Se é um dentista e está a ler isto e sente-se preso na rotina do trabalho – a atender 30 pacientes por dia, a apressar os procedimentos, a esgotar-se – pergunte-se a si próprio: foi para isto que me tornei médico?

Se é um paciente que está a ler isto e o seu dentista nunca lhe falou sobre a forma como a sua saúde dentária afecta a sua saúde geral, as vias respiratórias, a mordida ou a necessidade de rever tratamentos dentários antigos e falhados – talvez esteja na altura de pedir uma segunda opinião.

A filosofia No Half Smiles pode não ser para toda a gente.

Requer coragem. E, muitas vezes, é preciso dizer não ao dinheiro hoje para proteger a sua integridade – e a saúde do seu paciente – amanhã.

Mas prometo-lhe: vale a pena.

Convido-o a partilhar as suas ideias.

Já implementou conceitos semelhantes na sua clínica?

O seu dentista já adoptou esta abordagem consigo?

*Publicado originalmente no LinkedIn.

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