Inteligência artificial na medicina dentária

Inteligência artificial na medicina dentária

Para quem tem estado atento às últimas notícias do sector tecnológico, terá certamente reparado que a OpenAI lançou recentemente o ChatGPT, um novo chatbot de inteligência artificial (IA). É espantoso ver como esta tecnologia funciona e com que rapidez pode realizar tarefas extremamente complexas e ter praticamente toda a informação que está online à sua disposição numa questão de segundos. Tive de o testar várias vezes e tentar forçá-lo a cometer um erro sobre a informação que eu queria, mas esta tecnologia de aprendizagem automática é muito poderosa.

Por exemplo, pedi-lhe que me escrevesse uma canção sobre um tema específico e pedi-lhe os acordes de que mais gostava e, em menos de 10 segundos, tinha uma canção que podia tocar facilmente na guitarra. Cheguei a pedir-lhe que escrevesse este artigo, citando artigos e dando exemplos de aplicação de IA em medicina, e o resultado foi bastante completo, mas como as aplicações de IA em medicina dentária ainda são poucas e pouco relevantes, havia naturalmente pouca informação que pudesse combinar e utilizar de forma inteligente. Como tal, o resultado foi algo interessante, mas não o que eu procurava. Isto não quer dizer que daqui a um ano ou dois, quando o bot puder obter mais informações online e houver mais casos e documentação, a tecnologia não possa ser ainda melhor.

Se perguntarem ao ChatGPT coisas para as quais já existe uma grande quantidade de informação, as respostas são simplesmente espantosas e o mais assustador é que o bot ainda está a aprender. Aprende com cada pergunta e com cada resposta. Vai revolucionar a forma como procuramos a informação e a forma como aprendemos, e a verdade é que muitos empregos estarão em risco com esta tecnologia. Regra geral, não sou uma pessoa que tenha medo das tecnologias, mas se olharmos para a indústria automóvel, que dependia quase exclusivamente de pessoas, todas as tarefas são agora feitas principalmente com recurso a robôs. O trabalho dos caixas de supermercado também já pode ser 100% automatizado. Já existem plataformas para advogados e artigos jurídicos escritos por programas de IA e traduzidos quase instantaneamente. É realmente impressionante.

A nossa actividade dentária tem três componentes principais:

  • diagnóstico e plano de tratamento;
  • execução do tratamento; e
  • gestão quotidiana da clínica.

É claro que estou a simplificar. Todos sabemos que é muito mais pormenorizado do que isto e que há muitos mais factores em jogo do que estes, mas penso que estas são as principais áreas do funcionamento diário de uma clínica dentária moderna. Onde é que a IA pode ter um impacto imediato nestes domínios específicos?

Diagnóstico e plano de tratamento

Já existem várias plataformas online para apoiar no diagnóstico. Claro que não são perfeitas, mas já são capazes de, muito rapidamente, através de uma radiografia panorâmica ou de um exame CBCT, segmentar todos os dentes e identificar problemas como cáries, endodontia e dentes em falta. Algumas destas plataformas também ajudam o dentista a preparar de forma muito rápida um plano de tratamento para além do diagnóstico. Ainda estamos nos primórdios desta tecnologia, mas acredito que, dentro de muito pouco tempo, a aplicação da IA no diagnóstico e no planeamento do tratamento dos nossos pacientes será a norma e, para aqueles que trabalham para seguradoras ou grandes grupos dentários, será quase um requisito.

As vantagens implícitas nesta tecnologia são que, muitas vezes, podemos deixar escapar pequenos pormenores porque podemos estar a olhar para problemas mais complexos na boca dos nossos pacientes e, por exemplo, deixar escapar uma pequena cárie entre dois dentes ou porque não temos o tempo necessário na nossa consulta inicial para olhar para tudo ou porque estamos concentrados na razão principal pela qual o paciente nos procurou e podemos ignorar aspectos mais gerais. Esta tecnologia ajudará a reduzir os erros neste processo tão importante, quando estamos a diagnosticar um paciente pela primeira vez ou a reavaliar o caso após alguns anos. Todos sabemos que os nossos olhos podem por vezes enganar-nos. Neste caso, esta tecnologia desempenhará um papel poderoso na ajuda à análise de radiografias e exames CBCT, e acredito que os scanners intra-orais e os scanners de laboratório também farão parte deste processo, bem como os vários programas de software disponíveis para o laboratório dentário.

A IA também desempenhará um papel preponderante na preparação de um plano de tratamento, bem como na sequência de tratamentos a efectuar, assegurando a aplicação dos métodos correctos. Consoante a tecnologia utilizada, o software servirá a clínica ou o paciente. Diferentes grupos podem criar programas de IA de acordo com os seus vários objectivos, como a promoção da biomimética, do all-on-four ou do tratamento estético. Isto significa que os programas vão ser treinados por quem os programou para obter um resultado específico. O software de IA faz apenas o que está programado para fazer, pelo que quem cria estes programas de IA pode definir os parâmetros que quiser.

“A IA proporcionará um meio incrível para melhorar a eficácia dos diagnósticos e dos planos de tratamento, tornando o processo muito mais seguro para todos os envolvidos.”

Imagine um programa de IA disponível para o paciente, através do qual este poderia influenciar o plano de tratamento do dentista e os materiais utilizados. A partir do momento em que o dentista apresenta o plano de tratamento baseado no seu diagnóstico, o paciente pode pedir esse relatório e introduzi-lo no programa do seu smartphone e analisar instantaneamente de forma crítica se o objectivo do dentista é apenas financeiro e não a procura de um tratamento optimizado. Este programa pode permitir recomendações instantâneas de clínicas próximas que podem efectuar o mesmo tipo de tratamento a um custo mais baixo e com maior proficiência, porque dispõem de melhores meios e materiais para o fazer. Parece que em breve toda esta informação estará disponível para todos, e não apenas para os dentistas.

É por isso que tenho vindo a alertar, há já algum tempo, nas minhas palestras e em conferências internacionais, que esta é uma altura muito boa para começar a investir na qualidade e para sermos o mais éticos possíveis na nossa conduta profissional, porque, mais cedo ou mais tarde, haverá entidades tecnológicas a controlar a forma como trabalhamos. Vai ser muito difícil enganar os pacientes, e todos sabemos que hoje em dia há muitos que praticam uma medicina dentária que não é congruente com a ciência actual e com a evidência clínica, a fim de poupar tempo ou dinheiro. Será muito interessante ver a evolução de todas estas tecnologias no nosso sector.

Pessoalmente, acho que isto é óptimo! Desde o início da minha carreira, tenho-me colocado do lado do paciente e não do lado da indústria. Pratico a empatia todos os dias quando tenho um paciente à minha frente. Tenho a certeza de que todos os pacientes do mundo querem o mesmo: um bom tratamento, efectuado com os melhores materiais, sem dor e com cuidado e que dure uma vida inteira com uma estética elevada. É claro que esta fórmula mágica não existe, mas é certo que a forte tensão que existe entre os pacientes e a indústria se dissipará se tivermos um árbitro tecnológico no nosso meio.

Todos sabemos que há pacientes com expectativas irrealistas, que têm um fenótipo muito complicado e querem tratamentos orais complexos que são inatingíveis. Um programa de IA será capaz de mediar imediatamente a conversa, introduzindo um exame objectivo para que o dentista possa ter mais ferramentas para demonstrar os factos do caso com base na ciência e para apoiar uma explicação desafiadora ao paciente e, da mesma forma, para que o paciente tenha um apoio extra para garantir que não está a ser enganado e que o dentista não está a tentar vender algo fora do âmbito necessário, em defesa da saúde oral e da carteira do paciente. Penso que será uma ajuda incrível para muitos.

É claro que as clínicas que praticam medicina dentária sem respeito pela qualidade e pela ética devem estar muito preocupadas com estas novas tecnologias. Penso que esta mediação é algo que está a faltar no nosso sector. Já tenho trabalhado com empresas, ajudado algumas e também aprendendo e tentando assegurar que a tomada de decisões e a implementação se baseiam apenas na ética, na ciência e nas provas clínicas.

Resumindo, penso que a IA irá proporcionar um meio incrível para melhorar a eficácia dos diagnósticos e dos planos de tratamento, tornando o processo muito mais seguro para todos os envolvidos, e para garantir que nenhum passo é esquecido no desenvolvimento de um plano de tratamento e que a sequenciação dos passos do tratamento é feita de acordo com os princípios da biologia e da mecânica, com base numa compreensão profunda do que é possível e tangível, a fim de alcançar a longevidade e o sucesso para o dentista e, claro, para o paciente.

Tal como temos vindo a fazer com o tratamento com alinhadores transparentes há mais de 18 anos, todo este processo tem de ser validado por um ser humano, o dentista – que é, obviamente, soberano! No entanto, se o médico alterar o plano de tratamento, o programa de IA informará imediatamente o paciente dessa alteração, dando-lhe a oportunidade de perguntar porquê. Se as coisas correrem mal no futuro, os programas de IA darão certamente aos pacientes os meios para interagirem com os seus dentistas. Isto terá implicações jurídicas, e penso que tornará a vida mais difícil para alguns, mas mais fácil para outros.

Execução do tratamento

Penso que esta será uma área mais explorada pela robótica do que pela IA. Já existem robôs que podem colocar implantes dentários à distância com uma precisão incrível e, naturalmente, serão controlados por IA no futuro. Para já, podemos ter a certeza de que, pelo menos nos próximos anos, a arte de cuidar da boca dos nossos pacientes continuará a ser muito manual, e aqui os dentistas desempenham um papel de liderança. Acredito que, se formos inteligentes e utilizarmos o tempo poupado na criação de planos de tratamento e diagnósticos pela IA, podemos utilizar esse tempo para investir mais tempo nos nossos pacientes. É certo que haverá clínicas que rapidamente preencherão essas horas com mais pacientes, mas, como sabem, sou um forte defensor da Slow Dentistry(slowdentistry.com) e acredito que é assim que garantiremos o nosso futuro. O toque humano vai ser o principal factor de diferenciação. Penso que temos de nos concentrar no lado humano da nossa arte porque, no futuro, os dentistas que criarem as melhores relações com os seus pacientes serão mais bem sucedidos.

Os pacientes quererão ter a certeza de que o seu dentista está a fazer as coisas correctamente, e todos sabemos que trabalhar à pressa é muito difícil. Há cada vez mais jovens dentistas no sector. A experiência leva anos a adquirir, pelo que é imperativo dar aos jovens tempo suficiente para poderem fazer bem o seu trabalho. Acredito mesmo que haverá um programa de IA que será capaz de medir qual o tempo ideal para realizar cada tarefa com qualidade e que informará o paciente de que o tempo médio ideal para uma restauração de Classe I num molar é de 35 minutos, por exemplo, e que é essencial colocar um dique de borracha para o tratamento.

No que diz respeito à execução do tratamento, penso que a IA desempenhará um papel muito relevante na selecção dos materiais e tecnologias a utilizar. Aqui é fácil perceber como. Quando o programa de IA compila o plano de tratamento, será capaz de analisar rapidamente todos os materiais disponíveis e determinar o melhor material para cada etapa do tratamento a executar, ajudando o dentista a seleccionar os materiais com um maior cuidado para o seu tratamento. Isto também ajudará os laboratórios a evitar materiais que não sejam congruentes com o sucesso a longo prazo do tratamento que está a ser realizado. Sempre que o dentista ou o técnico de prótese dentária não aceitar a recomendação fornecida pela IA, o paciente será avisado.

“Acredito que a IA irá desempenhar um papel importante no apoio à gestão quotidiana das nossas clínicas.”

Considere a tecnologia blockchain, um livro-razão digital no qual as transacções efectuadas numa moeda criptográfica são registadas cronológica e publicamente. Estes dados são distribuídos por uma rede de computadores e não podem ser alterados sem a verificação e aprovação, feita através de um carimbo de data/hora. Isto significa que a segurança destes activos não depende de terceiros, anunciando uma descentralização significativa do poder sobre a informação.

Todas as informações que obtemos dos nossos pacientes, por exemplo, através de radiografias, exames intra-orais, exames CBCT e fotografias, pertencem ao paciente. Penso que sempre que essa informação for partilhada com entidades externas à clínica, o paciente será notificado através de um programa de IA. Imaginem, para os grupos que enviam coroas para serem fabricadas na China ou na Índia ou em qualquer outro lugar, o paciente será notificado de que o seu processo foi enviado para o estrangeiro. É claro que isto não constitui qualquer problema se o dentista tiver informado o seu paciente de que o fará para reduzir os custos, mas será difícil explicar isto ao paciente se lhe tiver sido dada a garantia de que a coroa será fabricada em Portugal, por exemplo. Isto demonstra que, no futuro, os cuidados éticos serão facilitados por defeito no sector dentário e no sector da saúde em geral, graças à IA e às tecnologias associadas.

Gestão quotidiana da clínica

Todos nós conhecemos as dificuldades que temos em gerir horários complexos. Acredito que a IA desempenhará um papel importante no apoio à gestão quotidiana das nossas clínicas. Seguem-se algumas áreas em que acredito que a IA nos será muito útil:

  • gestão de stocks;
  • cálculo das comissões dos dentistas;
  • facturação;
  • documentação legal para os pacientes;
  • gestão de conflitos entre doentes; e
  • melhorar a comunicação entre os diferentes departamentos.

Actualmente, todas estas tarefas exigem horas intermináveis de recursos humanos, dia após dia, ao longo de todo o ano, com custos elevados para os proprietários das clínicas. No entanto, é difícil incluir redundâncias nestas tarefas e há muitas possibilidades de erro. Todos estes erros têm também um custo elevado. Certamente que será muito bem-vindo para os proprietários de clínicas, seguradoras e todos os envolvidos na gestão de clínicas disporem de apoio que lhes permita reduzir os erros e aumentar a eficiência.

Vejamos um exemplo. Imagine um grupo de saúde que tem um dentista. Este dentista trabalha em três clínicas diferentes e, no final do mês, é remunerado com base num cálculo das actividades de tratamento realizadas. É necessário que um contabilista ou um gestor de conta confirme todos os factos descritos e introduzidos no sistema pelo dentista. Ora, o grupo de saúde deve confirmar que o dentista executou efectivamente estas tarefas, mas como pode saber se as executou bem? Como é que se pode ter a certeza de que não cometeu um erro? Um programa de IA utilizado pelos gestores da clínica poderia analisar muito rapidamente as radiografias, as fotografias, os e-mails da clínica e do dentista, toda a comunicação entre as partes envolvidas, o registo de stock dos materiais retirados para o tratamento, o tempo de cadeira atribuído ao tratamento e o fluxo de trabalho do laboratório em torno do tratamento e calcular imediatamente se, de facto, o que o dentista afirma ter feito foi realmente feito e bem feito. Naturalmente, o dentista sentir-se-á mais seguro porque todo o seu esforço será validado e confirmado pela direcção e o seu pagamento será efectuado sem problemas.

O problema surge se o dentista não tiver sido correcto na sua conduta, porque o programa de IA avisa rapidamente ambas as partes de um erro e ajuda a corrigi-lo, para benefício de ambas as partes. Certamente que nenhum dentista quererá ser pago por um trabalho que não fez, e nenhuma organização quererá pagar por um trabalho não efectuado. No futuro, provavelmente haverá uma discussão sobre se as organizações devem pagar por um trabalho mal feito, mas essa é outra discussão para outra altura.

Penso que a IA pode tornar as coisas mais difíceis para alguns, mas também muito mais fáceis para outros. Ainda estamos longe de ver tudo isto acontecer, por isso não se preocupem para já. É importante, no entanto, estar atento à evolução da situação, porque não se trata de saber se vai acontecer, mas sim quando.

*Publicado originalmente no Dental Tribune.

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